terça-feira, 15 de julho de 2008

A história do pó

O Raul citou esse texto e acho que vale colocar aqui.

A história do pó

Até onde é possível fragmentar? E depois de tudo fragmentado como voltar à totalidade? Da insignificância se pode retornar ao mundo significante? Fernanda Gomes submete seus objetos a um teste dessa ordem. Recolhe aquilo cujo destino é a insignificância. Coisas mínimas, irrisórias, quase imperceptíveis, raramente observadas são colocadas no lugar daquilo que merece uma atenção. Retiradas da insignificância e deslocadas para uma única função: serem vistas. Pois o olhar parece ser a única forma de tocá-las, o único possível contato antes que desapareçam. Por isso amarrar, colar, enrolar, juntar. Todas essas ações são modos de estabelecer uma coesão, evitar uma fragmentação maior e tentar dar um significado ao insignificante. Aqui, ali, acolá, mais próximos ou mais distantes, ora sugerindo um movimento ou um ruído, buscam juntos evitar afundar novamente no nada que é o lugar de onde vieram.

Quanto maior a fragmentação maior a perda de sentido, quanto maior a perda de sentido maior a presença do nada. Aqui cada um dos fragmentos sofre uma espécie de restauração e resignificação. Interrompido o processo em direção à insignificância permanecem num limite entre ser e não ser. Diante deles somos tomados por um certo estado de perplexidade. Pois é isso que o trabalho realiza, fazer de fragmentos coisas aceitando-os enquanto tal, fragmentos que continuam a ser, objetos indefinidos. Organizá-los no espaço de exposição é também uma forma dejuntar, colar, amarrar, resignificar. Fazer dos fragmentos uma totalidade outra, inédita, cujo sentido é apresentar a permanente e cotidiana ameaça do nada que existe e não percebemos – contar uma história a partir do nada que ameaça a História. Juntar, colar, amarrar são ações históricas quando só restaram fragmentos. O trabalho se utiliza da técnica do pó, e seu instante ótimo é quando a menor partícula material do ambiente humano passa de imperceptível a perceptível, quando cada um dos objetos oferece o seu quantum mínimo de significação e irradia um máximo de atenção. São objetos que tendem a desaparecer com a distância; aproximação e afastamento estabelecem a dinâmica do encontro com esses pós-readymades, que chegaram a pós sem nunca ser readymades. A desproporção entre a insignificância dimensional da coisa e a demanda de atenção que ela exige é a contrapartida autêntica à incessante hiper saturação aniquilante do ambiente cotidiano contemporâneo - por isso um pequeno mostruário arqueológico sem arché; limite último da circunferência sem centro; maior afastamento de qualquer princípio vigente. Duvidamos em que direção seguir a partir desses objetos; de onde viemos, onde estamos, para onde vamos, mais uma vez.

A parte sem o todo; é o que se anunciam: o todo desapareceu, a totalidade não é mais possível. Esses objetos se fundam na atualidade, nas micro ruínas do aqui e agora e testemunham o estrato inferior de uma história material da cultura contemporânea, o seu nível randômico elementar e desprezado, fronteira indistinta – como o pó – entre natureza e cultura na era da tecnologia mais avançada. Objetos cifrados de uma civilização pós-nuclear que falam, agora, de uma pós-história que só pode ser reconstruída a partir do pó – a história do pó. Tão frágeis, tão delicados e tênues por que assim antecipam e se oferecem como a antevéspera da destruição. Pode não parecer mas esses pequenos trabalhos não estão muito distantes das monumentais telas de Anselm Kiefer. É que eles ficam no outro extremo da parábola da destruição. Não têm a dimensão do monumento, mas a do dia a dia e dos objetos heróicos do cotidiano.

Paulo Venancio Filho