quarta-feira, 9 de julho de 2008

A MANDALA DE FERNANDA GOMES

Uma forma de continuar a conversa iniciada por Raul em relação a Fernanda, é o anexo de um texto aparecido em Lápiz, n.173, Madri, maio, 2001, abraço, Adolfo

obs. acho que a tradução ao português foi de Fernando Gerheim com revisão minha...também em site www.baumgartnergallery.net/gomesbio.htm

A MANDALA DE FERNANDA GOMES
Espaço Agora/Capacete (Rio de Janeiro)
Adolfo Montejo Navas

No cenário renovado e múltiplo do objeto na arte brasileira, Fernanda Gomes vem introduzindo, desde o final da década de 80, uma poética particular, tão eqüidistante do próprio objeto como da instalação. De fato, sua obra necessita como poucas da natureza desta última, da imantação de um espaço onde os objetos e materiais podem criar seu próprio âmbito, certa distância e irradiação como uma mandala .

Nesta composição lírica de objetos, de uma ordem minimalista nada tecnológica, o vocabulário é formado por uma longa lista: cravos, fios, sacos de papel, ímãs, pedaços de madeira, cordas, garrafas, bolas, caixas, arames, entre outros utensílios e trastes pessoais que parecem salvos de um desastre, o da nossa vida que canibaliza tudo, que enfrenta cotidianidade e memória todos os dias. Nesta arqueologia do mínimo que a artista apresenta contra o esquecimento, contra a aura perdida das coisas, se erige uma obra que alcança uma condição imaterial sem perder a materialidade: como se cada objeto necessitasse ser revelado, como acontece com alguns poemas-objeto, que sua obra não deixa de incluir. Todas as peças apresentadas, encontradas ou intervindas, parecem realizar a mesma pergunta dupla: como estruturar a delicadeza a partir da própria fragilidade e re-equilibrar o tempo? Algo que só pode derivar de uma orientação oriental, quase zen-budista, que tem na procura do equilíbrio e na expansão da consciência seu horizonte de busca: "no fundo, tudo parece que combina e encaixa" reconhece a artista de forma cotidiana.

A exposição, depois de sete anos de intervalo e de movimento internacional, é significativamente realizada em um lugar alternativo do Rio, Espaço AGORA/CAPACETE, mantido por artistas que dinamizam a produção e o debate contemporâneo de forma crítica, e que se tornou em menos de um ano em uma das melhores referências das artes plásticas do Brasil. Não em vão, esta mesma leitura de transformação do mundo através da percepção artística é partilhada pela artista: " a arte é uma forma de fazer política".

Uma exposição de Fernanda Gomes quase sempre significa uma nova articulação de algumas peças já existentes e outras novas. E como a renovação de um diário íntimo, oferece um auto-retrato. A nova configuração é também uma obra que contém outras obras como fragmentos, e é na obra fragmentária onde, talvez, importe mais a unidade (como os românticos alemães intuíram em seu tempo). Assim, alguns elementos que aqui escapam ao tamanho habitual (janelas, cadeiras) introduzem outra escala no humano a equacionar, onde tudo volta a estar concatenado, até chegar a um ponto que rima com uma certa tensão que exige silêncio. Na nova constelação de elementos há um aumento de planos, de eixos, assim como de gradações, que podem também ser de luz. Há mais arestas verticais e pendem mais coisas do teto. Continua havendo uma pureza ensimesmada morandiana junto à impureza povera estilizada, e uma certa sintonia espiritual com Bispo do Rosário na "restauração" do mundo.

Não há centro de gravidade, apesar de poder encontrar um nível no solo no meio da nave, pois tudo são centros dos quais se desprendem círculos concêntricos como conexões de atmosferas. A mandala de Fernanda Gomes não converge para um ponto porque tudo são pequenas formas que se unem para chegar a um corpo, que pede ser percorrido. O caminho móvel desta mandala tem a ver com os fragmentos do mundo contemporâneo cujo centro está disperso e com a conseqüente noção de equilíbrio desejado. Neste sentido a instalação é uma balança múltipla de realidades - onde chega a entrar a palavra meditação ("Nada" e um dicionário aberto em "abraço") - ; instalação que funciona na nave como contrapeso plural, e onde encontramos a imagem sintética e dinamogênica da mandala, representando a superação das "oposições do múltiplo e da unidade, do decomposto e do integrado, do diferenciado e do indiferenciado, do exterior e do interior, do difuso e do concentrado, do aparente visível e do real visível, do espaço-temporal e do intemporal e extra-espacial" (dicionário dos símbolos de Chevalier/Cherbrant).

Leveza, peso, distância, memória, cotidianidade, tempo. Se a poesia está em qualquer coisa que se manifeste, em Fernanda Gomes ela fala: as conexões ainda estão abertas. Feita in situ, a instalação parece que sempre esteve ali.

Duas coisas sobre o título, escritas como projeto (I)

O título do projeto, Travessias Cariocas, funciona como leit motiv da exposição. Trata-se de valorizar duas figuras de nossa contemporaneidade artística, como são a intertextualidade e a fragmentação. É de praxe reconhecer no léxico de hoje, o termo de apropriação, de reconhecimento do outro, o apoio de nossa subjetividade na alteridade. A intertextualidade faz parte dos recursos e estratégias de grande parte dos artistas. A multifacetada fragmentação de nossos dias convida também ao reconhecimento de outras leituras do mundo, algo que Travessias Cariocas explicita de forma generosa. Como neste projeto cada participante deve escolher a poética de outro para desenvolver uma obra inédita para a exposição, o termo "travessias" se aplica por diversas razões: trata-se de seguir o trabalho de alguém como inspiração para se criar uma nova obra; trata-se de conhecer e acompanhar a obra do outro para poder definir a poética que se quer trabalhar; trata-se de acomodar dois artistas para que haja uma troca e uma seqüência conceitual. Portanto, o fundamento do projeto é intercambiar poéticas.

No projeto Travessias Cariocas se produz um moto contínuo artístico, já que todas as obras são ligadas umas às outras, ou seja, vinculadas, produzindo uma corrente estética diversa, plural, mas sintonizada. Travessias Cariocas, como seu nome induz, revela como as passagens dos artistas são importantes, como a noção de trânsito é fulcral nesta mostra. Ela não deixa de apontar para uma transversalidade.

Adolfo Montejo Navas