terça-feira, 19 de agosto de 2008

Texto de Ligia Canongia sobre a exposição Mesuras (2005 - Cavalariças do Parque Lage)

Daisy Xavier – Mesuras

Texto Ligia Canongia






A criação poética é um campo movediço e polivalente que atravessa a ordem positiva das coisas. Ancorada na metáfora, e em outras figuras de linguagem derivadas, como a metonímia e a sinédoque, a poesia vive da substituição dos sentidos originais e da sua transposição espirituosa para os filamentos do imaginário. O fato de a ‘rede’ ser um ícone constante na obra de Daisy Xavier constitui um sinal claro de referência à própria natureza do gênero poético em suas finalidades, assim como ao atravessamento semântico que ele produz. Afinal, a rede, no belo dizer da artista “apenas finge que é proibido ultrapassar o que ela limita”¹.

A rede e a poesia fingem. Estão dispostas a fazer transgressões no espaço de nossos sentidos e sensações, como prestidigitadores que quisessem fazer desaparecer nossos elos lógicos com o mundo. E na instalação Mesuras, elas se unem para deslocar nossas próprias âncoras, fazendo-nos navegar à deriva em águas extraordinárias.

A ambivalência do título já indicia o campo movente onde pisamos, pois mesura é palavra dupla, que remete, simultaneamente, às idéias de medida e reverência. Ao mesmo tempo em que a obra opera com a medição matemática, através da medida padrão que tece os nódulos das redes, assim como de sua disposição espacial conforme as proporções da arquitetura, a obra também tenta criar uma métrica impossível, que seria a medida dos afetos. Sim, porque a artista intenta, com Mesuras, fazer uma homenagem ao pai e a sua atividade de pescador. Mesuras seria assim uma tentativa de fazer convergir o aspecto tangível e concreto das coisas a realidades outras, cujas distâncias são incomensuráveis. Fazer, enfim, uma épura que unisse a geometria projetiva, com a representação dos corpos e suas sombras, à projeção das formas sentimentais.

Tudo circula em torno dessa separação frágil entre o mundo, como uma entidade material e vulgar, e os desígnios afetivos, que se desenrolam em espaços de densidade impalpável e fora do tempo.

Suspensas e vertidas ao chão como uma cascata, as redes de cobre são fios translúcidos, quase líquidos, que se derramam no solo silenciosos, mas com a abundância das quedas d´água. O mar é a figura que ronda os espaços vazios, como se fosse reversível ao ar, e com ele criasse um mesmo fluxo. E são os aspectos líquidos e aéreos da instalação que vão configurar a sua extrema imaterialidade. Com suportes e meios de baixa densidade física, a obra, contudo, mantém uma energia circulatória impressionante, que atravessa muros e desemboca num redemoinho maciço de cobre, como o ponto terminal de uma gravidade desconhecida. Prodigiosa, essa força nos arrasta para a última sala, que é a ponta máxima do redemoinho, como viajantes tragados por seu vértice afunilado. Como a fantasmagoria de Edgar Allan Poe na descrição do redemoinho de Maelstrom, e sua “sensação estranha e maravilhosa de novidade que confunde o espectador” ², somos levados pela corrente das redes em direção ao mar, que surge projetado num segundo ambiente, sobre o vidro das janelas. Não sem antes, contudo, presenciar a passagem dessa correnteza pelo furo aberto na primeira galeria, que elucida o poder de transbordamento das águas, atravessando os espaços, em fluxo vertiginoso de expansão. Esse furo, foco de sucção de nosso olhar, leva o acontecimento plástico para outro espaço, dando continuidade ao movimento expansivo, e quebrando a resistência dos limites.

Verdadeira torção na idéia da perspectiva e do ponto de fuga convergente, essa fenda abala a construção euclidiana, varando o espaço como os cortes de Fontana. E, como no mestre ítalo-argentino, o talho aberto pela artista não constitui ato iconoclasta ou destruição de formalidade, mas, antes, a comunicação entre mundos e a passagem para uma dimensão de mesuras infinitas.

Muitos viram nas lacerações de Fontana um dado erótico admirável, com remissões possíveis à obra “Etant donnés: 1° La Chute d´eau/ 2° Le gaz d´ eclairage”, de Marcel Duchamp. E, certamente, Daisy Xavier também remonta ao espírito duchampiano, nessa sua abertura violenta para a cena que se descortina após a fenda. Como um buraco que fere o espaço tradicional, que dá a ver o invisível ou o imaginado, que trafega pelo inconsciente e pelo desejo, o talho na parede da artista é o rompimento do mundo que cabe nas medidas, uma ultrapassagem. Pois, como ela diz: “o tudo que um fio mede não me cabe” ³.

No último ambiente, onde desemboca todo o fluxo, a imagem do mar finalmente comparece. Na ‘paisagem’ de Daisy Xavier, no fundo uma estranha marinha, o mar é sublimado pela velatura transparente das redes, na primeira galeria, até ganhar visibilidade notável, na segunda, sob forma de projeção videográfica, em segmento realizado com parceria de Célia Freitas. Mas sua aparição é contraditória, e sua fluência líquida, de certa forma, fragmentada.

Fixada por ‘enquadramentos’ de padrão fixo, com a justa mesura de um frame, a imagem possui a medida de um determinado pedaço de fio de cobre esticado pelas mãos da artista: uma fatia ‘comensurável’ de mar. A água pulsa dentro do quadro projetado, mas flui de maneira ambivalente, discorrendo pelas janelas, ‘enquadrada’, a intervalos regulares de mesmas dimensões. Procedimento ardiloso e fundamental, a maneira de fazer o mar trafegar em compartimentos de visibilidade entrecortados desfaz a fluência real da natureza – fazendo a imagem perder o caráter de representação, e substitui o desenrolar contínuo das águas por uma métrica absurda que tenta domar o indômito, e recolher partes do indivisível. O mar, portanto, nessa fragmentação mensurável e descontínua, poderia ser um contra-senso no espírito da própria exposição, um movimento de reversão de expectativa, ao reduzir a correnteza tumultuosa das águas anunciadas ao tamanho da mão, ou aos limites do olho. Mas, como a operação de ambivalência se mantém e a imagem do mar, mesmo entrecortada, é deslizante, resta aí a própria idéia da ‘medição’ como um ato contínuo e infinito. O frame marítimo, apesar de suas interrupções, pressupõe uma repetição espacial ad infinitum, como as “Colunas sem fim”, de Brancusi. A astúcia que faz a transferência metonímica da idéia de medição em imagem de mar, que substitui o mensurável pelo incomensurável ou vice-versa, congrega afinal o tônus de todo o trabalho.

Ao mesmo tempo, a projeção luminosa ‘não cabe’ nos enquadramentos que lhe são impostos, furando a transparência das janelas e ganhando o espaço externo, vertida no mundo. Apesar das mesuras, portanto, a instalação está sempre a varar espaços e ultrapassar suas próprias fendas, avançando para além das regras que se auto-impõe. Abundante e silenciosa, a obra interpõe entre suas rotas mensuráveis um campo excêntrico e digressivo, que aponta para o que está fora, além fronteiras, além dos vértices dos redemoinhos, lá, onde se desenham os ideais de infinitude .

1- In depoimento da artista.

2- Poe, Edgar Allan – in Histórias extraordinárias, Círculo do Livro, Civilização Brasileira, São Paulo, 1973.

3- In poema da artista “A rede”.